“A liberdade é o oxigênio da vida democrática. Se há (o que me parece fantasia) nações democráticas que consigam viver sem liberdade, trata-se, por certo, de alguma exótica produção da fauna política, decorrente do fenômeno biológico das mutações. Será uma democracia anaeróbia, em cuja atmosfera qualquer de nós se sentiria asfixiado[1].”
A evolução tecnológica trouxe para o dia a dia das pessoas ferramentas que parecem solucionar qualquer tipo de problema. Em qualquer lugar ou situação, hoje, parece haver intervenção de alguma tecnologia. As facilidades criadas vão desde a possibilidade de contratar um motorista particular por um aplicativo instalado no celular, pago diretamente por cartão de crédito, a antenas detectoras de vibrações de luz instaladas em crânios de seres humanos que se tornam ciborgues, transcendendo um quadro de daltonismo, através da tradução de vibrações de luz em vibrações sonoras para identificação de cores.
Bom, essa mesma intervenção tecnológica faz gerar um grande amálgama interacional entre todos esses dispositivos e seres humanos - e, quanto mais interações, mais dados coletados. Esses dados não são abstratos, são pessoais. São dados sobre aqueles que fazem uso da tecnologia. São dados que identificam uma pessoa ou, ao menos, que a torna identificável.
E, de repente, conselhos que alguém pediria aos pais, companheiros ou melhores amigos, seguindo o critério de que essas pessoas conhecem o indivíduo a fundo, são desnecessários. Não é mais preciso perguntar nada a ninguém já que a tecnologia sugere - de forma bastante assertiva - onde se hospedar ao viajar, qual música ouvir, qual conteúdo consumir na rede social, qual filme assistir. O indivíduo navega, então, num mar sem limites de mapeamentos das suas preferências - o que ofaz pensar que a rede foi feita para ele (tudo isso sem ter que pagar, ou pagando bem pouco).
Mas o que esse cenário de ficção científica tem a ver com democracia, liberdade ou proteção de dados?
Longe da possibilidade de esgotar a temática que envolve a interligação dos dois temas, o presente artigo visa, de forma singela, a iluminar minimamente a problemática existente.
A liberdade enquanto pilar da democracia
Reflexo dos quereres do povo, a democracia se desenvolve, desde as origens, pela possibilidade de escolha e poder de decisão sobre temas que impactam a vida em sociedade. Era assim em Atenas, onde aqueles que se reuniam em assembléias temáticas para debater sobre a legislação seguiam protocolos sagrados em nome da imaculada forma de governo adotada.
Havia uma consciência coletiva solidificada no sentido de que o voto - ápice do processo democrático - tocava em absolutamente todos os aspectos das vidas daquelas pessoas. Sobre o tema, disse Fustel de Coulanges: "Havia absoluta necessidade de reflexão e de esclarecimento, porque um desastre para a pátria representava para cada cidadão diminuição de sua dignidade pessoal, de sua segurança, de sua riqueza.”[2]
De Atenas para cá a democracia passou, obviamente, por mutações da progressão da história, tanto de mudanças em valores morais quanto materiais, mas nenhuma delas, ao menos declaradamente, tentou suprimir a liberdade em sua diversidade de formas, da de imprensa à liberdade de expressão. Tanto é assim que a diferenciação básica de um regime democrático para um regime autoritário é exatamente o fato de que neste último há a supressão, muitas vezes por meio da força bruta, do exercício da liberdade.
O regime da Grécia Antiga passou, portanto, por transformações e hoje enfrenta o desafio de sobreviver às ferramentas disponibilizadas pelo avanço tecnológico. A possibilidade de rastreamento comportamental e mapeamento de perfis de indivíduos se apresenta como um dos desafios da democracia no século XXI, uma vez que se traduz em uma poderosa ferramenta para controle e manipulação dos indivíduos, muitas vezes absolutamente vulneráveis ao poder estatal exercido por alguns.
Tecnologia, seres humanos hackeados, manipulação: Democracia em erosão.
Em entrevista à CNN no ano passado, Yuval Harari, o historiador israelense autor dos best sellers Sapiens, Homo Deus e 21 lições para o século XXI, alertou: “I think the most important thing to know in the 21st century is thathumans are now hackeable animals. To hack human beings means tounderstand that human better than he or she understands themselves, which was never possible before in history on a massive scale.”[3]
O autor segue frisando quanto poder teria um ditador que concentrasse, através do uso de biotecnologia, as informações sobre as emoções de cada indivíduo ao ouvir seus discursos em rede nacional. Bom, tratar-se-ia, no caso, de tratamento de dados pessoais.
O case mais famoso de influência no processo eleitoral através de uso de dados pessoais envolve a identificação de padrões psicológicos/comportamentais para predizer ações de indivíduos, no intuito de manipular a escolha de representantes: trata-se do caso da Cambridge Analítica, empresa britânica que combinou comunicação e análise de dados para atuação em campanhas eleitorais.
Em entrevista ao The Guardian[4], o consultor de dados Christopher Wylie, ex-funcionário da empresa, explicou alguns detalhes sobre a técnica de perfilamento de titulares de dados para influência no processo eleitoral dos Estados Unidos, na campanha presidencial de 2016.
A empresa utilizou dados coletados do Facebook, como curtidas e quizzes comportamentais para identificar padrões psicológicos e, após, algoritmos cruzavam esses dados com outras bases com informações sobre, por exemplo, registros eleitorais que resultaram em centenas de dados por pessoa, viabilizando marketing direcionado para conversão de votos a Donald Trump.
Assim, a manipulação das massas de eleitores para condução a um determinado resultado nas urnas foi perfeitamente viável, erodindo a democracia em si, de dentro para fora. O resultado foi a eleição de Trump, em 2016.
O episódio aconteceu em um país em pleno desfrute da democracia, mas conhecidamente negligente em matéria de proteção de dados (não há uma legislação nacional nos Estados Unidos que proteja de fato os titulares de dados pessoais no contexto eleitoral).
E então fica o questionamento:houve, por parte dos eleitores, exercício da liberdade efetiva naquela ocasião? Um processo eleitoral maculado de manipulação a partir de técnicas desconhecidas pelo eleitorado, as quais agem a partir da influência exercida sobre suas vulnerabilidades psicológicas é um processo democrático?
Proteção de Dados & Democracia
Bem antes na intervenção tecnológica altamente sofisticada que se observa hoje, um clássico exemplo de uso de dados para dilaceração de direitos humanos é o da II Guerra Mundial, onde o regime nazista alemão, autoritário, mediante a coleta de dados de judeus, ciganos, e deficientes concretizou a chacina historicamente conhecida como Holocausto.
Na vivência dos traumas oriundos do episódio que marcou a história da humanidade, o continente europeu, então ,empenhou esforço na confecção de legislações que ergueram a privacidade e a proteção de dados como direito fundamental, como posto da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948[5], na Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950 [6], e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[7], que, ainda, prevê de forma específica, o direito à proteção de dados pessoais.
Voltando à liberdade enquanto base da democracia, é possível inferir que a intervenção tecnológica na experiência privada torna, em caso de inexistência de proteção legal em matéria de proteção de dados pessoais, titulares de dados vulneráveis a organismos que utilizam mecanismos predatórios para o exercício de influência nas decisões a serem tomadas no momento da escolha dos representantes eleitos num processo democrático.
Após a movimentação europeia para a proteção de dados e das reflexões diante de cases como o da Cambridge Analítica, a conscientização acerca da imprescindibilidade de leis de proteção de dados tem se difundido pelo mundo e, no Brasil, a Lei Geral de Proteção deDados, aprovada em 2018 finalmente entrou em vigor em setembro passado.
No entanto, pesquisas apontam que, por exemplo, metade dos jovens brasileiros, entre 18 e 25 anos, não sabe do que se trata a LGPD[8] -logo eles, os nativos digitais, que parecem pouco separar a vida privada daquela compartilhada em suas redes sociais e se encontram mais vulneráveis às influências externas.
Resta agora o esforço das instituições democráticas e dos especialistas da área na criação do awareness acerca do tema, de modo a elucidar para cada pessoa que não são dados a serem explorados, mas pessoas sendo exploradas.
E, para as empresas, não basta viabilizar o opt out das listas de e-mail marketing massivamente enviados de alguns anos para cá, ou de ter minimamente organizados os dados categorizados de cada titular que possa vi rexercer seu direito de acesso aos dados, garantido pela LGPD[9] - a mudança vai muito além de uma adequação à Lei, é preciso a incorporação do espírito ao negócio.
Em artigo publicado no New York Times em janeiro de 2020, Shoshana Zuboff, autora do livro The Age of Surveillance Capitalism, ressaltou a possibilidade de supressão do mercado baseado em dados, da forma estabelecida hoje, trazendo uma reflexão sob o aspecto da repugnância moral e consequências violentas, elucidando que, caso o mercado fosse extinto, não se trataria de algo radical: “(...) societies out lawmarkets that trade in human organs, babies and slaves. In each case, we recognize that such markets are both morally repugnant and produce predictably violent consequences. Human future smarkets can be shown to produce equally predictable outcomes that challenge human freedom and undermine democracy. Like subprime mortgages and fossil fuel investments, surveillance assets will become the new toxic assets.”[10]
Ora, e o que foi a invalidação do Privacy Shield[11], protocolo criado para a regularidade de transferências internacionais de dados entre Europa e Estados Unidos senão uma pausa na brincadeira de transferências eivadas de irregularidades diante da legislação?
Sob a ameaça de colapso dessa economia baseada em dados, é preciso consistência legislativa na proteção de dados, além de limpidez e transparência com todos os titulares de forma que os mesmos entendam que a transformação digital já está acontecendo e somos parte dela - independentemente do nível de literacia digital. Essa transformação se baseia em grande parte no conhecimento profundo dos indivíduos, como alertou Yuval Harari, através da captação, por meio de seus dados pessoais, de suas preferências, seja para oferecer produtos ou serviços ou políticos “ideais”.
Assim, é possível concluir que não é viável, no século XXI, sustentar a democracia sem que o sistema legal trate com afinco sobre a proteção de dados pessoais. Não é em vão que o STF afirmou, através do Acórdão relativo ao julgamento da ADI 6.387 relativa à MP 954, que versou acerca do compartilhamento de dados por parte de empresas de telefonia ao IBGE, a presença da proteção de dados no ordenamento jurídico brasileiro de forma sistêmica, além da importância da sua consagração no cenário internacional.[12]
A proteção de dados é portanto pela consagração da liberdade de poder escolher, de forma autônoma, autoral, o que nos configura enquanto indivíduos, o que e quem nos representa - tudo pela defesa do núcleo duro da dignidade da pessoa humana.
À democracia: a proteção de dados.
[1] AlmeidaJúnior, A. (1945). Os três pilares da democracia. Revista Da Faculdade DeDireito, Universidade De São Paulo, 40, 130-148. Recuperado de http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66043. Acesso em 16/11/2020.
[2] A Cidade Antiga Numa-Denys Fustel de Coulanges (1830-1889).Título original La Cité Antique - Étude sur Le Culte, Le Droit, Les Institutions de la Grèce et de Rome Tradução © 2006 Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Versão para eBook eBooksBrasil.
[3] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=45FuyCmyvRs&t=638s. Acesso em 17/11/2020.
[4]Disponível em https://www.theguardian.com/news/2018/may/06/cambridge-analytica-how-turn-clicks-into-votes-christopher-wylie Acesso em 17/11/2020.
[5] Artigo 12 - Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. Disponível em https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos Acesso em 17/11/2020.
[6] ARTIGO8° - 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. Disponível em https://www.echr.coe.int/documents/convention_por.pdf . Acesso em 17/11/2020.
[7] Artigo 7º - Respeito pela vida privada e familiar Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações. Artigo8º - Proteção de dados pessoais 1. Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados pessoais que lhes digam respeito. Disponível em https://www.europarl.europa.eu/charter/pdf/text_pt.pdf . Acesso em17/11/2020.
[8] Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/11/05/metade-dos-jovens-brasileiros-desconhece-lei-de-protecao-de-dados-diz-pesquisa.ghtml Acesso em 17/11/2020.
[9] Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição: (...) II - acesso aos dados. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm Acesso em 17/11/2020.
[10] Disponível em https://www.nytimes.com/2020/01/24/opinion/sunday/surveillance-capitalism.html Acesso em 18/11/2020.
[11] Disponível em https://noyb.eu/en/cjeu Acesso em 18/11/2020
[12] Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344949214&ext=.pdf Acesso em 18/11/2020
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